29 de fevereiro de 2008

CXXXI - avós


Uma avó é uma mulher que não tem filhos, por isso gosta dos filhos dos outros. Que não tem nada para fazer, é só estarem ali. Quando nos levam a passear, andam devagar e não pisam as flores bonitas nem as lagartas. Nunca dizem "Despacha-te!". Normalmente são gordas, mas mesmo assim conseguem apertar-nos os sapatos. Sabem sempre que a gente quer mais uma fatia de bolo ou uma fatia maior. Usam óculos e às vezes até conseguem tirar os dentes. Quando nos contam histórias, nunca saltam bocados e nunca se importam de contar a mesma história várias vezes. As avós são pessoas grandes que tem sempre tempo. Não são tão fracas como dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós. Toda a gente deve fazer o possível por ter uma avó, sobretudo se não se tiver televisão.

texto escrito por uma menina de 8 anos (que infelizmente não sei o nome), publicado no "Jornal do Cartaxo"

20 de fevereiro de 2008

CXXX - moinhos de vento


Nisto descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo; e logo que Dom Quixote os viu disse ao seu escudeiro:
- A aventura vai guiando as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar; porque vês ali, amigo Sancho Pança, donde se avistam trinta ou poucos mais desaforados gigantes, com quem penso travar batalha e tirar-lhes a todos as vidas, com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus arrancar tão má semente da face da terra.
- Que gigantes? -perguntou Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês - respondeu seu amo - de braços compridos, que alguns costumam ter quase duas léguas.
- Olhe vossa mercê - retorquiu Sancho - que aqueles que ali se avistam não são gigantes, e o que neles parecem braços são as aspas, que volteadas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho.
- Bem se vê - observou dom Quixote - que não estás formado nisto de aventuras; aquilo são gigantes, e se tens medo afasta-te daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.
E, dizendo isto, meteu esporas a Rocinante, sem atender aos brados que o seu escudeiro Sancho lhe dava, advertindo-o que sem a menor dúvida eram moinhos de vento e não gigantes aqueles que ia acometer. Mas ele ia tão convencido que eram gigantes, que nem ouvia os avisos do seu escudeiro nem adregava ver, embora estivesse já bem perto, o que realmente eram; antes ia dizendo em alta grita: - Não fujais, cobardes e vis criaturas, que é um cavaleiro sozinho que vos acomete. Levantou-se nisto um pouco de vento, e as grandes aspas começaram a mover-se, o qual visto por dom Quixote, este disse: - Pois ainda que movais mais braços que os do gigante Briareu, haveis de pagar-mas. E, em dizendo isto, e encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcineia pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto com a sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha em frente; e dando-lhe uma lançada na aspa, o vento fê-la girar com tanta fúria que fez a lança em pedaços, arrastando atrás de si o cavalo e o cavaleiro, que foi rolando muito mal tratado pelo campo.
Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo a todo o correr do seu asno, e quando chegou descobriu que o amo não se podia mexer; tal foi a pancada que deu com Rocinante.
- Valha-me Deus! - disse Sancho - não lhe disse eu a vossa mercê que olhasse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, coisa que não poderia ignorar se não tivesse outros moinhos na cabeça?
- Cala-te amigo Sancho - respondeu dom Quixote -, que as coisas da guerra, mais do que quaisquer outras, estão sujeitas a contínua mudança; quanto mais penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos para me furtar a glória de vencê-los; tal é a inimizade que me tem; mas, ao fim e ao cabo, hão-de poder pouco as suas malas-artes contra a bondade da minha espada.

D. Quixote de la Mancha, cap. VIII, Miguel de Cervantes.

11 de fevereiro de 2008

CXXIX - castelos de areia

by Isabel Faria
Junto a uma serra há uma praia pequenina, de areia macia, onde as crianças gostam de brincar. É ali que se encontram muitas vezes a Rita, o Miguel e o André, três primos, cuja melhor brincadeira é construir castelos, ali à beira do mar. Mas são sempre uns senhores castelos! Altos, com torres e torreões, com portas e portões! E é ver quem faz o castelo mais alto, mais complicado, mais… tudo!
Um dia, os primos resolveram construir um castelo com pessoas, cavalos, portas, janelas, árvores e tudo o mais que lhes viesse à cabeça. E o castelo ali se ergueu, maior do que todos os outros.
— Castelo sem princesa, nunca se viu! — disse a Rita. E logo os primos puseram uma princesa à janela.
— Castelo sem bandeiras, nunca se viu! — disse o Miguel. E logo apareceram bandeiras de papel na torre mais alta, a ondular ao vento.
— Castelo sem fosso, nunca se viu! — queixava-se agora o André. E lá fizeram um fosso cheio de água.
— Um castelo deve ter bruxas! — continuou a Rita. E ela mesma fez uma bruxa a saltar da torre, montada numa vassoura.
— Um castelo deve ter fadas! — pediu o André. E a fada entrou pela ponte levadiça.
— Um castelo deve ter um gigante! — E o Miguel ria-se enquanto fazia um gigante ao lado da fada.
— À noite, as tempestades metem medo! — E a Rita salpicava o castelo com água do mar, como se fosse uma grande chuvada.
— E o vento sopra forte… — E todos sopravam e riam, riam e sopravam.
— E um dragão, um castelo precisa de um dragão! — gritou o Miguel — Vamos fazer um dragão.
— Não vamos fazer dragão nenhum; o Fofinho serve. — E a Rita puxou o cão para junto do castelo.
— E agora chega o príncipe e mata o dragão. — anunciou o André.
— Mata nada! O cão é meu! — gritou o Miguel, agarrado ao Fofinho, que não parecia interessado em fazer o papel de dragão.
Entretanto, o mar tinha subido devagarinho e já destruíra uma porta do castelo.
— Meninos, são horas do almoço! — chamava a tia Isabel. — Já estão há muito tempo aí ao sol.
— É isso! É isso! — disse o Miguel, muito sisudo. — É o tempo, é o tempo! Não há castelo que escape aos ataques do tempo! Ele passa e as muralhas irão cair, as paredes abrirão fendas; do castelo em ruínas fugirão fadas e dragões, bruxas e gigantes! Amanhã será a altura de reconstruirmos o nosso castelo.
— Amanhã faremos novas torres — garantia o André.
— Amanhã teremos novas fadas — afirmava o Miguel.
— Pois é, e hoje teremos novo almoço! Vamos comer.
E a Rita correu para casa com os primos e o cão-dragão atrás dela.
O castelo ali ficou na luta com o mar. Aos poucos, as torres caíram, o fosso desfez-se, a fada já não era mais do que um montinho de areia, arredondado pelas ondas. O mar ia deixar a praia de novo lisa e macia, pronta para que as crianças viessem construir os seus castelos de areia com dragões, gigantes e feiticeiros.
Amanhã, recomeçará a brincadeira do mar e das Ritas, dos Migueis e dos Andrés que sonham e constroem castelos de areia.

Natércia Rocha
Castelos de Areia

Bertrand Editora, 1995