16 de dezembro de 2007

CXXV - mapas

Uma coisa é o mapa que serve de referência ao viajante, que ele consulta ao longo do percurso, ou que estuda antes de empreender a viagem.
Outra coisa é o mapa que o viajante desenha enquanto viaja.
Na verdade, o viajante experimenta outras direcções, outras velocidades e outros repousos, funda outras escalas, isto é, constrói um mapa diferente daquele outro que lhe serve de guia.
Há pois o mapa de viagem e o mapa-viajante.
É possível que existam diferentes espécies de viajantes.
Há os que planificam a viagem a partir de um mapa pré-existente e “esvoaçam” até à exaustão na esperança de tornarem o seu mapa-viajante o mais semelhante possível com o mapa de viagem que escolheram previamente. Mas existem também os que consultando certamente mapas de viagem se abandonam aos fluxos da viagem, aos imponderáveis do percurso, aos seus acidentes próprios desenhados em sincronia com as contingências da viagem; o mapa-viajante tem a sua sede no caminho do viajante, não na estrada mas no corpo, nas esquinas dos sorrisos, nos cansaços, nas horas das sedes, na poeira alegre ou triste, nas tibiezas de quem ao certo não sabe, nas luzes das conversas que ficam, nos pensamentos-entroncamentos do centro da praça, na irrefutabilidade dos passos...

A viagem. De todos. De todos os dias.

6 de dezembro de 2007

CXXIV - Vestígios

A ti, querida Xana, que me ensinas a ler. E a ver.

Ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser.

– E tu? – perguntou a Polo o Grão Kublai Kan. – Tornas de países igualmente remotos e tudo o que sabes dizer-me são os pensamentos que vêm à ideia de quem apanha fresco à tardinha sentado à soleira da porta. – Então para que te serve tanto viajar?
- Anoitece, estamos sentados na escadaria do teu palácio, sopra um vento suave – respondeu Marco Polo. – Qualquer país que as minhas palavras evoquem à tua volta, vê-lo-ás de um observatório situado como o teu, mesmo que no lugar do palácio esteja uma aldeia de palafitas e que a brisa traga o odor de um estuário lodoso.
- O meu olhar é o de quem está absorto e medita, admito-o. Mas o teu? Tu atravessas arquipélagos, tundras, cadeias de montanhas. Mais valeria que não saísses daqui.
O veneziano sabia que quando Kublai começava a contradizê-lo era para seguir melhor a linha de um seu raciocínio; e que as suas respostas e objecções tomavam lugar num discurso que já se desenrolava por sua própria conta, na cabeça do Grão Kan. Ou seja, entre eles era indiferente que as questões e soluções fossem enunciadas em voz alta ou que cada um dos dois continuasse a ruminá-las em silêncio. De facto, estavam calados, de olhos semicerrados, estendidos em coxins, balançando em camas de rede, fumando compridos cachimbos de âmbar.
Marco Polo imaginava responder (ou Kublai imaginava a sua resposta) que quanto mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades longínquas, mais compreendia as outras cidades que tinha atravessado para chegar lá, e voltava a percorrer as etapas das suas viagens, e aprendia a conhecer o porto de que havia zarpado, e os lugares familiares da sua juventude, e os arredores da casa, e uma praceta de Veneza onde corria em criança.
Nesta altura Kublai Kan interrompia-o ou imaginava interrompê-lo, ou Marco Polo imaginava que era interrompido, com uma pergunta como: - Caminhas sempre de cabeça virada para trás? – ou: - O que vês está sempre nas tuas costas? ou melhor: - A tua viagem só se faz no passado?
Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos.
Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça viver uma vida ou um instante que poderiam ser seus; no lugar daquele homem agora poderia estar ele se tivesse parado no tempo muito tempo antes, ou se muito tempo antes numa encruzilhada em vez de tomar uma estrada tivesse tomado a oposta e ao cabo de uma longa volta viesse encontrar-se no lugar daquele homem naquela praça. Agora, daquele seu passado verdadeiro ou hipotético ele está excluído; não pode parar; tem de prosseguir até outra cidade onde o espera um outro seu passado, ou algo que talvez tivesse sido um seu possível futuro e agora é o presente de outro qualquer. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.
- Viajas para reviver o teu passado? – era agora a pergunta de Kan, que também podia ser formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de Marco: - O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá.
intrudução: Boaventura Sousa Santos ; As Cidades Invisíveis, Italo Calvino