– Vou contar-te uma bem boa. Vejo que estás meio a dormir, flutuas entre o sonho e a realidade. Uma vez, tinha eu a tua idade, estava estendido, num belo Verão, à sombra de uma pequena mata, os pássaros chilreavam, falavam das suas histórias de territórios. Eu ouvia também o sopro quente da brisa nas folhas das árvores, um curso de água corria, cantando, sobre as pedras e os insectos palpitavam, o azul do céu entrava em mim pelas pestanas semicerradas. Mexo subitamente um braço e a minha mão encontra uma forma dura e redonda cujo toque me parece estranho. Curiosa pedra. Endireito-me um pouco para a ver e era uma
tartaruga, com metade da cabeça dentro da carapaça. Deixo a minha mão pousada nela, não era desagradável, e penso: aqui está uma boa sopa para esta noite. Depois, talvez por causa da textura macia e perfumada do ar, decido levá-la, para casa mas deixá-la viver o Verão, para a observar um pouco. Mais tarde veríamos, quanto à panela. E digo a mim mesmo que ela daria uma excelente almofada para a minha nuca e para o resto da minha sesta. Assim o pensei assim o fiz, e, com a cabeça bem apoiada, mergulhei num torpor beatífico. Calmo. E nessa cabeça cheia do calor daquela hora de Verão, ouvi uma voz que me falou como se estivesse numa caverna:
«Obrigada por me deixares viver, diz-me ela, é sempre muito cedo para morrer e a minha lenta existência de tartaruga permite-me compreender muitas coisas que me servirão talvez depois da morte, em todo o caso, me interessam muito no dia-a-dia. Entrei na tua vida como num sonho e ninguém sabe se a voz que te fala te sonha ou se tu me sonhas. Não interessa. Mas quero ensinar-te como agir nos teus sonhos, pois as imagens da noite, as imagens do sono não são inúteis. Elas também revelam. Reflectem-te. Parecem muitas vezes loucas, descabidas, aberrantes, descrevem situações existentes e desconhecidas, conduzem-te para caminhos movediços onde cenários se transformam infinitamente, onde as personagens aparecem e desaparecem como que por magia. Tu lembras-te de algumas imagens fugazes, muitas vezes esquece-las, elas perturbam-te por vezes e frequentemente questionam-te. São como reflexos nocturnos e bizarros tombados na água da tua consciência. Interpretar esses sinais? Cabe-te a ti fazê-lo.
«A verdadeira chave dos sonhos existe em cada um de nós, cada um possui a sua chave particular. Presta atenção ao ambiente do sonho, que te esclarecerá mais os detalhes da história que acabas de viver sonhando. Assim, se tu estás sempre a correr nos teus sonhos, se foges de alguém, de alguma coisa, isso indica um medo na tua vida, um medo a vencer. É preciso começar por vencê-lo no campo de batalha do sonho. Se alguém te persegue num sonho, então ataca-o, verdadeiramente, sem medo. Na maior parte das vezes farás dele um aliado. Ou então esta personagem inimiga dissipar-se-á, desaparecerá. Sonhas que estás fechado num certo lugar? Então, é preciso sair daí, deixar de bater numa parede que se vai abrir para uma nova situação. Sonhas que voas ou que cais? Não vale a pena ter medo da aterragem, poderá ser feita devagar, se tu assim o decidires. Um animal feroz e desconhecido lança-te chamas e vai despedaçar-te? Atira-te a ele, monta-o. E deixa-te levar onde quiseres. Se não conseguires, nada de remorsos inúteis ao acordar. A situação apresentar-se-á de novo sob uma outra forma, enquanto não for resolvida, e tu poderás enfrentá-la de novo e conseguir desatar este bloqueio que envenena a tua liberdade. É um grande segredo que te deixo aqui. Assim, noite após noite, tu aprenderás a domar as tuas energias interiores e a passear sem medo no país do Outro Lado.»
A tartaruga calou-se. Eu adormeci de verdade. Ao acordar ela já lá não estava. O meu braço servia de suporte à minha cabeça. Teria sonhado?
Marc de Smedt, A Lenda de Talhuic.