12 de março de 2008

CXXXIII - Um Segredo da Tartaruga

– Vou contar-te uma bem boa. Vejo que estás meio a dormir, flutuas entre o sonho e a realidade. Uma vez, tinha eu a tua idade, estava estendido, num belo Verão, à sombra de uma pequena mata, os pássaros chilreavam, falavam das suas histórias de territórios. Eu ouvia também o sopro quente da brisa nas folhas das árvores, um curso de água corria, cantando, sobre as pedras e os insectos palpitavam, o azul do céu entrava em mim pelas pestanas semicerradas. Mexo subitamente um braço e a minha mão encontra uma forma dura e redonda cujo toque me parece estranho. Curiosa pedra. Endireito-me um pouco para a ver e era uma tartaruga, com metade da cabeça dentro da carapaça. Deixo a minha mão pousada nela, não era desagradável, e penso: aqui está uma boa sopa para esta noite. Depois, talvez por causa da textura macia e perfumada do ar, decido levá-la, para casa mas deixá-la viver o Verão, para a observar um pouco. Mais tarde veríamos, quanto à panela. E digo a mim mesmo que ela daria uma excelente almofada para a minha nuca e para o resto da minha sesta. Assim o pensei assim o fiz, e, com a cabeça bem apoiada, mergulhei num torpor beatífico. Calmo. E nessa cabeça cheia do calor daquela hora de Verão, ouvi uma voz que me falou como se estivesse numa caverna:
«Obrigada por me deixares viver, diz-me ela, é sempre muito cedo para morrer e a minha lenta existência de tartaruga permite-me compreender muitas coisas que me servirão talvez depois da morte, em todo o caso, me interessam muito no dia-a-dia. Entrei na tua vida como num sonho e ninguém sabe se a voz que te fala te sonha ou se tu me sonhas. Não interessa. Mas quero ensinar-te como agir nos teus sonhos, pois as imagens da noite, as imagens do sono não são inúteis. Elas também revelam. Reflectem-te. Parecem muitas vezes loucas, descabidas, aberrantes, descrevem situações existentes e desconhecidas, conduzem-te para caminhos movediços onde cenários se transformam infinitamente, onde as personagens aparecem e desaparecem como que por magia. Tu lembras-te de algumas imagens fugazes, muitas vezes esquece-las, elas perturbam-te por vezes e frequentemente questionam-te. São como reflexos nocturnos e bizarros tombados na água da tua consciência. Interpretar esses sinais? Cabe-te a ti fazê-lo.
«A verdadeira chave dos sonhos existe em cada um de nós, cada um possui a sua chave particular. Presta atenção ao ambiente do sonho, que te esclarecerá mais os detalhes da história que acabas de viver sonhando. Assim, se tu estás sempre a correr nos teus sonhos, se foges de alguém, de alguma coisa, isso indica um medo na tua vida, um medo a vencer. É preciso começar por vencê-lo no campo de batalha do sonho. Se alguém te persegue num sonho, então ataca-o, verdadeiramente, sem medo. Na maior parte das vezes farás dele um aliado. Ou então esta personagem inimiga dissipar-se-á, desaparecerá. Sonhas que estás fechado num certo lugar? Então, é preciso sair daí, deixar de bater numa parede que se vai abrir para uma nova situação. Sonhas que voas ou que cais? Não vale a pena ter medo da aterragem, poderá ser feita devagar, se tu assim o decidires. Um animal feroz e desconhecido lança-te chamas e vai despedaçar-te? Atira-te a ele, monta-o. E deixa-te levar onde quiseres. Se não conseguires, nada de remorsos inúteis ao acordar. A situação apresentar-se-á de novo sob uma outra forma, enquanto não for resolvida, e tu poderás enfrentá-la de novo e conseguir desatar este bloqueio que envenena a tua liberdade. É um grande segredo que te deixo aqui. Assim, noite após noite, tu aprenderás a domar as tuas energias interiores e a passear sem medo no país do Outro Lado.»

A tartaruga calou-se. Eu adormeci de verdade. Ao acordar ela já lá não estava. O meu braço servia de suporte à minha cabeça. Teria sonhado?

Marc de Smedt, A Lenda de Talhuic.

13 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Artur Ribeiro,
Vejo que tem essência concentrada na alma.Saber escolher, é sinónimo de saber viver!
As suas escolhas de textos, deixam-nos a pensar.
O sonho comanda a vida, ou será o contrario?!...
Um abraço,
adri

quarta-feira, março 12, 2008 8:41:00 da manhã  
Blogger trixa said...

(...)através dos sonhos nossa alma ganha asas e voa para o infinito, ao encontro da alma universal, trazendo à nossa consciência desperta a riqueza simbólica adormecida no nosso inconsciente(...)
Encontrar a verdade dos próprios sonhos não é uma tarefa simples, pois significa paciência, honestidade, coragem e clareza consigo mesmo.
(...)
Para quem descobre o mistério dos seus próprios sonhos, para quem descobre o caminho a essa fonte de sabedoria, eles tornam-se um magnífico meio de auto-conhecimento.

“Vou dormir e sonhar e amanhã de manhã vou me lembrar”.

Instituto de Psicologia Transpessoal,"A sabedoria dos sonhos"

quarta-feira, março 12, 2008 3:57:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

trixa,
obrigado pela colaboração. assim, a Quinta-Essência fica mais rica, mais trans-pessoal, logo mais interessante. bem-haja.

quinta-feira, março 13, 2008 11:09:00 da manhã  
Blogger pasta7 said...

adri,
não sei se é o sonho que comanda a vida ou a vida que comanda o sonho. talvez aconteça tudo. talvez se não perca nada. talvez "sonho" e "vida" sejam conceitos válidos mas mediados pela centelha maravilhosa que nos engrandece, que nos devora, envolve e devolve.
grande abraço.

quinta-feira, março 13, 2008 11:19:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

A interpretação do sonho cabe a cada um, pois uma mesma coisa/situação varia conforme o significado que cada pessoa lhe atribuí. Assim sendo, cada um deverá identificar o aspecto que o seu sonho quer trazer para a realidade. Neste processo serão avaliadas as duas vertentes: a realidade (que muitas das vezes é uma mera máscara) e o sonho (que conduz à pura essência)... referi máscara, pois poucas são as pessoas que conseguem mostrar a sua verdadeira face! O sonho é a nossa oportunidade de corrigir o que está de errado em nós! Infelizmente as pessoas não ouvem o seu coração e isso desacata inumerosas situações de mal-estar em qualquer campo da vida! Espero que as pessoas possam aprender com os seus sonhos (quando dormem) e que não deixem de sonhar (quando acordam, no sentido de seguirem as indicações dadas pelos seus corações)!

quinta-feira, março 13, 2008 5:40:00 da tarde  
Blogger ...QUE VOA... said...

Um grande segredo foi deixado aqui.
Quando me lembro dos meus sonhos, tento fazer sempre a minha interpretação. Por vezes partilho-os com os outros para que novas visões me alarguem o horizonte. Amei a imagem que colocaste, ja me oferecerqam dois, mas no fundo da minha alma tenho um verdadeiro. Dou importância ao sonho porque sei que ele é o caminho para o amanhã. Esta noite espero sonhar, como todas as noites o espero, mas acima de tudo espero me lembrar do que sonho para que possa aprender.

segunda-feira, março 17, 2008 1:07:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

ola querido amigo Artur...

Há muito tempo que nao te vejo e confesso que tenho muitas saudades tuas... Ainda bem que continuas sempre a entrar na minha vida quotidiana com os teus adoráveis textos que tanto gosto de ir acompanhando... Sinto falta de ti e de pessoas como tu na minha vida, sabes?
Para quem vê de fora pode pensar que tenho uma óptima vida neste momento, mas a verdade é que me sinto a fugir de mim, da minha dimensao além humano, aquela que nos permite elevar até ao limite que só nós podemos estabelecer... Ando rodeada de pessoas muito inteligentes, muito eficientes no seu trabalho, que têm discursos bonitos e quase sempre coerentes, mas que nao sabem reconhecer um sorriso sincero, e para as quais um toque ou um abraço pode ter significados totalmente estraviados da sua verdadeira essencia...
Tenho medo de me tornar uma pessoa assim e vivo angustiada com essa possibilidade... e é por isso que te agradeço, a ti e às outras pessoas que ainda se mantêm na minha vida com a mesma presença amiga e sincera, que me ajuda a sentir que ainda existe em mim a vontade de ser diferente, de ter/ viver uma vida diferente, independentemente do contexto em que esteja inserida... faltam-me forças para nao me deixar levar na corrente...
obrigada por existires, querido amigo...
e já sabes, ainda que numa presença silenciosa, estou sempre aqui se precisares de mim...

um grande beijinho e um abraço amigo...

terça-feira, março 18, 2008 4:51:00 da manhã  
Blogger Zé Miguel Gomes said...

Não, não foi sonho.

Fica bem,
Miguel

terça-feira, março 18, 2008 2:30:00 da tarde  
Blogger pasta7 said...

t,
já sei! fez-se luz!
Na quinta-feira jantamos juntos?

terça-feira, março 18, 2008 7:32:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Artur,
Quando estiver com a t, dê-lhe cumprimentos meus.
Na pintura, como na escrita ha sinais indeleveis que nos acusam e,não vale a pena querermo-nos confundir.Chame-se-lhe estilo!
E esse(a) T, tem muito estilo, muito nível, muita garra e vai à luta voando,...
Quando estiver com ela, procure-lhe pelo H,pelo desconhecido e pelo outro?!
Boa Páscoa, e, nas prox. semana falo pessoalmente, para tratar-mos da fundação.

quarta-feira, março 19, 2008 7:57:00 da manhã  
Blogger pasta7 said...

sm,
faço das tuas as minhas palavras. senti-me acompanhado tb por ti. estamos juntos!

quarta-feira, março 19, 2008 6:33:00 da tarde  
Blogger pasta7 said...

aqui o primeiro poema que escrevi, tinha 12 anos:

num sonho alegre
a vontade de viver
com medo de acordar
com esperança em aprender

Hoje, neste post, reparo que os sonhos, desde cedo, foram para mim, um porto seguro: neles sentia-me vivo (acordado), alegre (sem "prisões") e em aprendizagem (em comunhão); já na altura tinha dificuldades em aceitar a vida triste que levava (medo de acordar).
Agora, que já estou um pouco mais crescido, é esse menino de 12 anos que me sonha, e que me cabe a tarefa de o acordar sem o assustar.
beijinho.

quarta-feira, março 19, 2008 6:54:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Se forem parecidos com o que eram, anos atras, entrem em contato comigo, vamos trocar pensamentos, sermos amigos?wiliamfrancisco25@gmail.com

domingo, novembro 23, 2014 4:14:00 da manhã  

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