CLXXXVI - A Jornada do Herói
"Somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, para assumirmos, dai por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigénio do ar, e que mais tarde precisarão erguer-se sobre os próprios pés. É uma enorme transformação e seria, certamente, um acto heróico, caso fosse praticado conscientemente. E existe aí também um acto heróico de parte da mãe, responsável por tudo isso."
Otto Rank
Quem de nós, quando criança, ao ouvir uma história de heróis ou a assistir a um filme de aventuras, não se imaginou a si mesmo como o personagem central, aquele que vence o monstro, resgata a princesa e acaba erguido nos ombros da multidão?
Há em todo o ser humano um herói em potencial, e isso é o que faz a vida ser uma grande jornada. E para que esse herói se possa manifestar, é preciso subir montanhas, percorrer trilhas, lutar contra dragões, atravessar desertos, rios, territórios inimigos, entrar noutras galáxias, enfrentar criaturas monstruosas, descer aos infernos, atrás de um objectivo ou ideal. Ou seja: ser capaz de adquirir novos conhecimentos vencendo os perigos, superando as adversidades e os medos.
Este objectivo está sempre presente nos mitos e nas histórias sobre a forma de uma proposta ou de um desafio. É preciso encontrar um tesouro escondido, resgatar alguém, libertar uma cidade das mãos de algum poder malvado. Para isto é preciso que o herói vença o medo do desconhecido, que saiba suportar a solidão e a rejeição, que tenha claros os seus objectivos e metas e, acima de tudo, que tenha confiança na sua "capacidade de ser herói".
Esta capacidade reside em todo o ser humano. Porém, a sociedade contemporânea não estimula o seu desenvolvimento. Desta forma, quem consegue realizar a sua jornada heróica exerce um grande fascínio, pois passa a ser olhado como um modelo de pessoa capaz de ousar, de assumir riscos e de não se intimidar pelo extraordinário e/ou pelo desconhecido.
Cada vez que alguém consegue superar o seu próprio sofrimento, transforma-se num testemunho do poder da energia criativa da vida existente em cada um de nós.
As montanhas, os rios e os desertos que devem ser atravessados, os inimigos e monstros a serem vencidos simbolizam as dificuldades que cada um deverá enfrentar e ultrapassar para se tornar “herói” Caso não consiga, será uma vítima. Não existe uma terceira possibilidade.
A jornada do herói começa no acto de nascer, porque de alguma forma, ao respirar por nós mesmos pela primeira vez, gravamos na nossa consciência que há determinadas coisas que ninguém poderá fazer por nós. Trata-se da caminhada para o amadurecimento da nossa capacidade para suportar as dores, carregar as humilhações, as incompreensões e a solidão.
Assim, utilizando essa linguagem simbólica, durante milénios, os seres humanos tentaram encontrar o caminho para transcender as limitações das suas vidas. As histórias de heróis e heroínas foram transmitidas oralmente, pelos mais velhos, tanto na forma de contos infantis como em peças de teatro, na literatura ou nos mitos.
Nessa linguagem simbólica, o lado obscuro da realidade que permanece encoberto, os mistérios ocultos dos quais nada conhecemos, são representados pelas paisagens sombrias, pelos locais ermos ou pelos personagens malévolos. E os acontecimentos que o herói atravessará neles ou com eles, geralmente envolvendo viagens perigosas, são a sua descida até o mundo da sombra colectiva, de onde retornará para o limiar da consciência, porém já na posse de algum elemento que simbolize a integração dessa sombra. Ou seja, a consciencialização de emoções, sentimentos e desejos que sempre estiveram com o herói e ele ainda não sabia, ou não se apercebera.
Uma estrutura de personalidade estável só pode ser encontrada num ser humano capaz de integrar "a sombra", a dualidade.
O conceito de sombra refere-se ao que está inconsciente dentro de cada um de nós. A mitologia costuma utilizar a imagem do dragão como inimigo tradicional do herói. Obviamente, o tipo de herói, assim como o de dragão, varia de cultura para cultura e segundo a faixa etária a quem o mito se destina. O dragão pode estar representado nos poderes destruidores da natureza, capazes de produzir catástrofes, nas provas escolares, nas doenças, no envelhecimento, na criação dos filhos ou em qualquer outro elemento que implique perigo ou limitação para a vida do herói.
Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos contemporâneos do mito do herói, disse:
"Os incidentes fantásticos e irreais representam triunfos de natureza psicológica, e não física".
Todas as culturas são cheias de histórias de heróis que foram, venceram e voltaram, e tais histórias formam parte da tradição oral de muitos povos e que cada geração passou para a seguinte.
Joseph Campbell estabeleceu um paralelo entre todas as culturas e os mitos dos seus respectivos heróis: para concluir com sucesso a jornada, ele precisa cumprir três estágios básicos: "separação, iniciação e retorno".
A separação, a partida, pode ser física ou psicológica: o herói precisará entrar noutros mundos, reais ou simbólicos, regidos por outras leis, onde não terá aliados ou amigos e onde deverá enfrentar os desafios. Essa fase está associada, na maioria dos casos, ao corte simbólico do cordão umbilical, ao fim da dependência psicológica da figura dos pais. É uma fase que precisa de ousadia, de capacidade de se abrir ao novo.
Se esse processo não for cumprido na sua plenitude, se a separação não for bem resolvida, o ser humano heróico encontrará dificuldades nas próximas etapas da sua jornada.
Ao enfrentar os desafios, acontece a iniciação. Esse é um estádio especial de provas e vitórias. É um tempo na vida do herói em que ele está "morto" para o mundo dos seus. Esse estágio acontece em territórios desconhecidos, em lugares inimigos, em florestas ou em regiões isoladas. O perigo dessa etapa reside na possibilidade de o herói se perder em labirintos. Aqui ele encara o dragão, corre os maiores riscos, questiona valores e normas sociais dominantes, desce aos infernos e transpõe os seus limites. O sucesso deste estágio traduz-se na aquisição da capacidade de tomar as rédeas da sua própria vida.
No retorno, terceira e última etapa do processo, acontece a reintegração ao seu meio, à sua sociedade, da qual se afastou no início da jornada. É o momento das recompensas ligadas ao sucesso por ter conseguido vencer o estádio anterior, que denominamos "iniciação". Às vezes, essa etapa da jornada é a mais difícil. Após o seu longo afastamento, onde vivenciou processos dolorosos de transformação, poderá encontrar dificuldades para se reintegrar à situação inicial. Mas esse é também o momento da possibilidade de um final feliz, da integração da sombra.
Otto Rank
Quem de nós, quando criança, ao ouvir uma história de heróis ou a assistir a um filme de aventuras, não se imaginou a si mesmo como o personagem central, aquele que vence o monstro, resgata a princesa e acaba erguido nos ombros da multidão?
Há em todo o ser humano um herói em potencial, e isso é o que faz a vida ser uma grande jornada. E para que esse herói se possa manifestar, é preciso subir montanhas, percorrer trilhas, lutar contra dragões, atravessar desertos, rios, territórios inimigos, entrar noutras galáxias, enfrentar criaturas monstruosas, descer aos infernos, atrás de um objectivo ou ideal. Ou seja: ser capaz de adquirir novos conhecimentos vencendo os perigos, superando as adversidades e os medos.
Este objectivo está sempre presente nos mitos e nas histórias sobre a forma de uma proposta ou de um desafio. É preciso encontrar um tesouro escondido, resgatar alguém, libertar uma cidade das mãos de algum poder malvado. Para isto é preciso que o herói vença o medo do desconhecido, que saiba suportar a solidão e a rejeição, que tenha claros os seus objectivos e metas e, acima de tudo, que tenha confiança na sua "capacidade de ser herói".
Esta capacidade reside em todo o ser humano. Porém, a sociedade contemporânea não estimula o seu desenvolvimento. Desta forma, quem consegue realizar a sua jornada heróica exerce um grande fascínio, pois passa a ser olhado como um modelo de pessoa capaz de ousar, de assumir riscos e de não se intimidar pelo extraordinário e/ou pelo desconhecido.
Cada vez que alguém consegue superar o seu próprio sofrimento, transforma-se num testemunho do poder da energia criativa da vida existente em cada um de nós.
As montanhas, os rios e os desertos que devem ser atravessados, os inimigos e monstros a serem vencidos simbolizam as dificuldades que cada um deverá enfrentar e ultrapassar para se tornar “herói” Caso não consiga, será uma vítima. Não existe uma terceira possibilidade.
A jornada do herói começa no acto de nascer, porque de alguma forma, ao respirar por nós mesmos pela primeira vez, gravamos na nossa consciência que há determinadas coisas que ninguém poderá fazer por nós. Trata-se da caminhada para o amadurecimento da nossa capacidade para suportar as dores, carregar as humilhações, as incompreensões e a solidão.
Assim, utilizando essa linguagem simbólica, durante milénios, os seres humanos tentaram encontrar o caminho para transcender as limitações das suas vidas. As histórias de heróis e heroínas foram transmitidas oralmente, pelos mais velhos, tanto na forma de contos infantis como em peças de teatro, na literatura ou nos mitos.
Nessa linguagem simbólica, o lado obscuro da realidade que permanece encoberto, os mistérios ocultos dos quais nada conhecemos, são representados pelas paisagens sombrias, pelos locais ermos ou pelos personagens malévolos. E os acontecimentos que o herói atravessará neles ou com eles, geralmente envolvendo viagens perigosas, são a sua descida até o mundo da sombra colectiva, de onde retornará para o limiar da consciência, porém já na posse de algum elemento que simbolize a integração dessa sombra. Ou seja, a consciencialização de emoções, sentimentos e desejos que sempre estiveram com o herói e ele ainda não sabia, ou não se apercebera.
Uma estrutura de personalidade estável só pode ser encontrada num ser humano capaz de integrar "a sombra", a dualidade.
O conceito de sombra refere-se ao que está inconsciente dentro de cada um de nós. A mitologia costuma utilizar a imagem do dragão como inimigo tradicional do herói. Obviamente, o tipo de herói, assim como o de dragão, varia de cultura para cultura e segundo a faixa etária a quem o mito se destina. O dragão pode estar representado nos poderes destruidores da natureza, capazes de produzir catástrofes, nas provas escolares, nas doenças, no envelhecimento, na criação dos filhos ou em qualquer outro elemento que implique perigo ou limitação para a vida do herói.
Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos contemporâneos do mito do herói, disse:
"Os incidentes fantásticos e irreais representam triunfos de natureza psicológica, e não física".
Todas as culturas são cheias de histórias de heróis que foram, venceram e voltaram, e tais histórias formam parte da tradição oral de muitos povos e que cada geração passou para a seguinte.
Joseph Campbell estabeleceu um paralelo entre todas as culturas e os mitos dos seus respectivos heróis: para concluir com sucesso a jornada, ele precisa cumprir três estágios básicos: "separação, iniciação e retorno".
A separação, a partida, pode ser física ou psicológica: o herói precisará entrar noutros mundos, reais ou simbólicos, regidos por outras leis, onde não terá aliados ou amigos e onde deverá enfrentar os desafios. Essa fase está associada, na maioria dos casos, ao corte simbólico do cordão umbilical, ao fim da dependência psicológica da figura dos pais. É uma fase que precisa de ousadia, de capacidade de se abrir ao novo.
Se esse processo não for cumprido na sua plenitude, se a separação não for bem resolvida, o ser humano heróico encontrará dificuldades nas próximas etapas da sua jornada.
Ao enfrentar os desafios, acontece a iniciação. Esse é um estádio especial de provas e vitórias. É um tempo na vida do herói em que ele está "morto" para o mundo dos seus. Esse estágio acontece em territórios desconhecidos, em lugares inimigos, em florestas ou em regiões isoladas. O perigo dessa etapa reside na possibilidade de o herói se perder em labirintos. Aqui ele encara o dragão, corre os maiores riscos, questiona valores e normas sociais dominantes, desce aos infernos e transpõe os seus limites. O sucesso deste estágio traduz-se na aquisição da capacidade de tomar as rédeas da sua própria vida.
No retorno, terceira e última etapa do processo, acontece a reintegração ao seu meio, à sua sociedade, da qual se afastou no início da jornada. É o momento das recompensas ligadas ao sucesso por ter conseguido vencer o estádio anterior, que denominamos "iniciação". Às vezes, essa etapa da jornada é a mais difícil. Após o seu longo afastamento, onde vivenciou processos dolorosos de transformação, poderá encontrar dificuldades para se reintegrar à situação inicial. Mas esse é também o momento da possibilidade de um final feliz, da integração da sombra.