25 de maio de 2008

CXXXVII - das Profissões do Papalagui e da Confusão que daí Resulta

grato, paty
Tuiávii, Chefe da Tribo Tiaveá na Polinésia, descreve aos seus compatriotas as suas impressões a respeito dos valores e modo de vida do homem dito “civilizado”, a que apelida de Papalagui, observados durante uma viagem que efectuou à Europa:
Todos os Papalaguis (europeus, homem "civilizado") têm uma profissão. É difícil explicar-vos o que isso é. É qualquer coisa que uma pessoa devia ter vontade de fazer, mas que raramente tem. Ter uma profissão significa fazer sempre a mesma coisa, fazer uma coisa tantas vezes que se acaba por fazê-la sem esforço e de olhos fechados! Se com as minhas mãos outra coisa não faço além de construir cabanas, ou tecer esteiras, construir cabanas ou tecer esteiras é a minha profissão.
Há profissões para os homens e para as mulheres. Lavar a roupa na lagoa e fazer brilhar as peles que se põem nos pés, são profissões de mulher; conduzir uma piroga no mar e caçar pombos na floresta virgem, são profissões de homem. A mulher abandona em geral a sua profissão assim que se casa, ao passo que o homem é precisamente nessa altura que realmente se consagra à sua profissão. Qualquer alii só dará a sua filha a um pretendente que exerça já uma profissão. Um Papalagui sem profissão não pode casar-se.Todo o homem "civilizado" tem a obrigação e o dever de ter uma profissão.
É por essa razão que, muito antes ainda das tatuagens da puberdade, todos os rapazes europeus são obrigados a decidir do trabalho que irão fazer para o resto da vida. Chama-se a isso " Escolher uma Profissão ". É uma coisa muito importante e na aiga fala-se tanto nisso como no que se deseja comer no dia seguinte. Se o jovem alii quer tecer esteiras, um velho alii leva-o a um tecelão de esteiras que mostrará ao jovem como é que se tece uma esteira. Ensina-o a tecer uma esteira sem precisar olhar para o que faz. É comum levar muito tempo mas, assim que o jovem aprende, larga o seu mestre e, então, se diz: "Tem uma Profissão"!
Se o Papalagui, mais tarde, chega a perceber que prefere construir cabanas a tecer esteiras, dizem: " Enganou-se na profissão! ", o que é a mesma coisa que dizer: " Aquele falhou o alvo ". Ora isso é uma coisa grave, pois mudar assim de profissão é contrário à moral. Qualquer honrado Papalagui correrá o risco de perder a sua honra se disser: " Não posso fazer esse trabalho, pois não sinto nenhum prazer ou satisfação com isso! " ou " As minhas mãos não me obedecem quando faço esse trabalho! ".
Há, entre os Papalaguis, tantas profissões quantas pedras há na lagoa. O Palalagui faz de cada acto uma profissão. Se alguém apanha as folhas murchas da árvore de fruta-pão, é uma profissão; se lava os pratos em que come, é também uma profissão. Desde que se faça qualquer coisa, quer com as mãos quer com a cabeça, exerce-se uma profissão. Igualmente é profissão ter ideias ou olhar para as estrelas. Não há, a bem dizer, coisa alguma que um homem seja capaz de fazer, que o Papalagui não transforme em Profissão.
Quando, então, um "civilizado" diz: " Sou tussi-tussi ", isso é a sua profissão; ele nada mais fez do que escrever cartas umas atrás das outras. Não é ele que enrola a sua esteira e a pendura numa trave, não é ele que vai para a cabana-cozinha cozer um fruto, não é ele também que lavará os pratos em que come. Come peixes, mas não vai pescar; come frutas mas não as apanha da árvore; escreve tussi e mais tussi, pois tussi-tussi é a sua profissão. Da mesma maneira, todos aqueles actos são outras tantas profissões: enrolador e arrumador de esteiras, cozinheiro de frutos, lavador de pratos, pescador, colhedor de frutas. Só a profissão confere a cada um o direito de exercer uma actividade.
Assim se explica o facto de a maior parte dos Papalaguis apenas saber fazer o que constitui a sua profissão. Nem o chefe mais importante, que tem a cabeça cheia de sabedoria e o braço cheio de força, é capaz de enrolar e pendurar a sua esteira, de lavar os seus pratos. Também é isto que aquele que sabe escrever tussis com várias cores não é capaz de remar numa canoa pela lagoa, e vice-versa. Exercer uma profissão quer dizer: saber apenas provar ou apenas cheirar ou apenas lutar; em todos os casos, saber apenas uma coisa.
Esse saber-fazer-apenas-uma-coisa é uma grande fraqueza e um grande perigo porque qualquer um pode ver-se , um dia, obrigado a remar numa canoa para atravessar a lagoa.
O Grande Espírito deu-nos mãos para colhermos as frutas das árvores, para apanharmos os bolbos de taro no pântano. Deu-nos mãos para protegermos o nosso corpo contra os inimigos. Deu-nos as mãos para nos divertirmos, dançando e brincando, folgando de todos os modos. Não as deu apenas para construirmos apenas cabanas, apenas colhermos frutas ou bolbos; mas sim, para nos servirem, para nos defenderem em todos os momentos, em todas as ocasiões.
O Papalagui é incapaz de compreender isto. Para vermos quão falso é o seu comportamento, completamente falso e contrário aos mandamentos do Grande Espírito, basta olharmos para eles que, incapazes de correr porque a sua profissão os impede de se mexerem, criam uma barriga igual à dos puaa; basta ver como são incapazes de levantar ou de lançar uma azagaia, por terem a mão demasiado habituada a segurar o osso que serve para escrever tussis; basta ver como são incapazes de impor uma directriz a um cavalo selvagem, só por estarem sempre a olhar para as estrelas ou a desenterrar ideias da cabeça.
É raro ver um Papalagui adulto que ainda salte ou saiba dar cambalhotas como uma criança. Pelo contrário, quando anda, arrasta o corpo, como se alguma coisa lhe entravasse os movimentos. O Papalagui disfarça, nega esta fraqueza, dizendo que correr, pular, saltar não são atitudes decentes para um homem importante. Falso argumento: os seus ossos é que estão duros, sem movimento e os seus músculos sem animação, porque a sua profissão os fez sonolentos e mortos. E a profissão é também um aitu que destrói a vida; um aitu que ao homem insinua bonitas coisas mas lhe suga o sangue.
A profissão prejudica o Papalagui de outras maneiras ainda, revelando também com isso, o seu carácter de aitu.
É uma alegria construir uma cabana, derrubar árvores na floresta, talhá-las em forma de estacas, erguê-las, arqueá-las para fazer o tecto e, finalmente, depois de amarrar as estacas e tudo mais com fios de coqueiro, cobrí-las com as folhas secas de cana-de-açucar. Não preciso dizer-vos como é grande a alegria de toda a comunidade depois de construir todos juntos a casa do chefe; até as crianças e as mulheres participam da festa.
Mas que direis se só alguns poucos homens da aldeia pudessem ir à floresta abater as árvores e talhá-las em estacas? E estes poucos não deveriam ajudar e erguer as estacas porque a profissão deles seria só a de derrubar as árvores e talhar estacas? E os que erguessem as estacas não poderiam entrançar os caibros do tecto porque, como profissão, teriam apenas a de erguer estacas; e os que tecessem os caibros não poderiam ajudar a cobrir a cabana com cana porque só teriam que entrançar caibros. Nem todos poderiam ajudar a apanhar seixos na praia para forrar o chão porque só poderiam fazer isso aqueles que tivessem esta profissão. E só poderiam festejar a construção, inaugurar a cabana aqueles que nela morassem e não aqueles que a tivessem construído.
Estais rindo! E estou certo de que dirão como eu: " Se tivéssemos o direito de fazer apenas uma coisa e não pudéssemos participar de todos os trabalhos que precisam da força humana, teríamos só metade da alegria, ou talvez nenhuma! " E por certo chamareis de louco a todo aquele que pedisse das vossas mãos apenas um só trabalho, como se todos os outros membros e sentidos do vosso corpo fossem aleijados e mortos.
É daí que resulta a miséria do Papalagui. É agradável ir buscar água ao riacho uma vez, até várias vezes por dia; mas quem tiver de ir buscá-la da manhã à noite, todos os dias, em todos os momentos, enquanto tiver forças, e isso sem cessar, afinal, acaba por enfurecer-se, por atirar, de raiva, o cântaro para bem longe, a fim de libertar o corpo de tais cadeias que o prendem, pois não há coisa que pese tanto ao homem quanto fazer sempre a mesma coisa.
Mas se só houvesse Papalaguis que, dia após dia, fossem buscar água à mesma fonte, isso ainda até poderia ser para eles muito bom. Mas, não: Há uns que apenas levantam ou abaixam a mão, ou empurram um pau numa sala suja, sem luz, nem sol; nada fazem que exija esforço ou dê prazer. No entanto, segundo o modo de pensar do Papalagui, é absolutamente necessário que eles abaixem ou levantem a mão ou que empurrem uma pedra pois é isso que faz andar ou regular a máquina que fabrica os aros de cal, por exemplo, ou peitorais, ou conchas para calças, ou seja o que for. Existem menos palmeiras nas nossas ilhas do que, na Europa, Papalaguis com o rosto acinzentado porque não gostam do que fazem, porque a profissão devora toda a sua alegria e não lhes dá nem um fruto, nem se quer uma folha com a qual se regozijem.
E é por isto que existe ódio ardente entre os homens que têm profissões diferentes. Todos guardam rancor e desdém no seu coração como o guardam o animal preso por grilhões, que se rebela sem conseguir soltar-se. Todos estão sempre a comparar as suas profissões, ora de elevado estatuto, ora de baixo mérito, embora todas sejam apenas atividades parciais. O homem, na verdade, não é apenas mão, ou apenas pé, cabeça; é tudo isso ao mesmo tempo, num só. Mão, pé, cabeça, são feitos para formarem um todo. Um ser humano saudável sente-se realmente feliz quando todas as partes do seu corpo vivem em harmonia com os seus sentimentos, e não quando apenas uma parte do seu corpo vive, e todas as outras estão mortas. Isso perturba, desespera e faz uma pessoa adoecer.
Por causa da profissão, o Papalagui vive confuso e desvairado. É claro que não quer pensar nisso. E de certo, se me ouvisse falar, diria que sou louco; que quero julgar sem o poder fazer porque nunca tive uma profissão e nunca trabalhei como os europeus "civilizados".
Mas o Papalagui nunca conseguiu fazer provar-nos por que razão havemos de trabalhar mais do que o Grande Espírito exige para que possamos comer à vontade, cobrir a cabeça com um tecto, divertimo-nos nas festas da tribo. Talvez este trabalho lhe pareça pouco, e pobre a nossa existência sem profissões. Mas o irmão das nossas muitas ilhas faz o seu trabalho com alegria, jamais com desgosto. Para ele, se não for assim é melhor nada fazer. E aí é que somos diferentes dos europeus "civilizados". O Papalagui suspira quando fala do seu trabalho, como se uma carga o sufocasse; mas é cantando que os jovens samoanos vão para os campos de taro; cantando, as moças lavam as tangas nas correntezas do riacho. O Grande Espírito não quer, certamente, que fiquemos cinzentos por causa das profissões, nem que nos arrastemos como o fazem as tartarugas. Quer ver-nos, isso sim, altaneiros e firmes em tudo quanto fizermos, sem nunca perdermos a alegria do olhar nem a agilidade dos membros.
O Papalagui