1 de abril de 2008

CXXXV - menos é mais

Siddhartha. .reflectia., ..caminhando lentamente. Compreendeu que já não era jovem, mas um homem. Compreendeu que algo o tinha abandonado, da mesma maneira que a cobra abandona a sua pele velha, que já não estava nele algo que o tinha acompanhado durante toda a juventude e que lhe tinha pertencido: o desejo de ter mestres e de escutar doutrinas. O último mestre mais santo, o Buda, tinha-o deixado, fora obrigado a separar-se dele, não pudera aceitar os seus ensinamentos.
Avançou reflectindo, cada vez mais devagar, e perguntou a si mesmo: “Mas o que era isso que querias aprender com doutrinas e com mestres e que eles, que tanto te ensinaram, não podiam ensinar?”. E compreendeu:”Era o Eu, cujo sentido e natureza eu queria conhecer. Era o Eu, de que eu queria libertar-me, que eu queria vencer. Mas não fui capaz de o vencer, apenas de o enganar, de fugir dele, esconder-me dele. Na verdade, nada no mundo ocupou tanto os meus pensamentos como este Eu, este enigma, o facto de eu estar vivo, de existir separado e isolado dos outros, de ser Siddhartha! E sobre nada no mundo sei tão pouco como sobre mim próprio, sobre Siddhartha!”.
O homem pensativo que avançava devagar parou, presa destas ideias, e imediatamente uma outra ideia surgiu delas, uma ideia nova, que o fez exclamar:” O facto de nada saber acerca de mim, de Siddhartha continuar a ser tão estranho e desconhecido de mim mesmo, tem uma causa, uma única: eu tinha medo de mim, estava a fugir de mim! Procurava Atman, procurava Braman, estava disposto a fragmentar o meu Eu para descobrir nas suas profundezas desconhecidas o cerne de todas as coisas, Atman, a vida, o divino, o último. Mas, desta maneira, perdi-me de mim mesmo”.
Siddhartha, abriu os olhos e olhou em redor, um sorriso iluminou o seu rosto e um profundo sentimento de despertar de um longo sonho percorreu todo o seu corpo. E recomeçou imediatamente a andar, a andar com ligeireza, como um homem que sabe o que tem a fazer.
“Ah! – pensou ele, respirando fundo –, não quero que Siddhartha, me volte a escapar! Não quero voltar a iniciar os meus pensamentos e a minha vida com Atman e com o sofrimento do mundo. Não quero voltar a matar-me e a fragmentar-me, para encontrar um segredo escondido por entre os destroços. Não quero aprender mais Yoga-Veda, ou Atharva-Veda, ou os ascetas, ou qualquer outra doutrina. Quero aprender comigo mesmo, quero ser o meu aluno, quero conhecer esse segredo chamado Siddhartha”.
Olhou em redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, o mundo era colorido, o mundo era estranho e misterioso! Isto era azul, isto era amarelo, isto era verde, corria o céu e o rio, a floresta e a montanha erguiam-se, tudo belo, tudo enigmático e mágico, e no seu meio, ele, Siddhartha, o Despertado, a caminho de si mesmo. Tudo isto, todo este amarelo, azul, rio e floresta, entrava pela primeira vez nos olhos de Siddhartha, já não era magia de Maja, já não era a multiplicidade absurda e acidental do mundo das aparências, desprezível aos olhos dos profundos pensadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade e procuram a unidade. O azul era azul, o rio era rio, e quando o uno e divino em Siddhartha viviam ocultos no azul e no rio, essa era justamente a forma e o espírito divino de ser aqui amarelo, aqui azul, além floresta e aqui Siddhartha. O espírito e o ser não estavam algures por detrás das coisas, estavam nelas, em todas elas.

Hermann Hesse, Siddhartha.

9 Comments:

Blogger ...QUE VOA... said...

Era mesmo isto que precisava de ler para "termninar" a ruela desta minha pequenha ao mesmo tempo enorme caminhada. Andar no caminho de si mesmo é, para mim, no caminho dos 33 fantásticos anos, a chave da fechadura do meu Eu. Tive o prazer de ter um encontro comigo, de sentir o grande prazer dos primeiros passos da minha liberdade. Nasci com o mundo às costa e sempre vivi e senti isso como o meu fado. Hoje ao ter consciência que tenho um Eu que sempre me acompanhou e achava que não o sentia nem vivia resolvi andar para que lentamente o saboreasse e lhe desse todo o valor por sempre me ter acompanhado.
Um beijinho muito grande de quem te ama.

terça-feira, abril 01, 2008 3:32:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro Artur,
Como o entendo! Sermos alunos, de nós mesmos.E,se o professor estiver equivocado?!
Um abraço,adri

terça-feira, abril 01, 2008 7:58:00 da manhã  
Blogger trixa said...

Caríssimo:
Respondo-te com a citação de um Homem que considero ter vivido à frente do seu tempo e que me parece muito apropriada.
"Tenho a certeza de que Hoje somos senhores do nosso destino, que a tarefa que temos perante nós não está acima das nossas forças; que as dores e dificuldades não estão para lá das nossas capacidades de resistência física. Enquanto tivermos fé na nossa própria causa e uma indominável vontade de ganhar, a vitória não nos será negada."
Winston Churchill

terça-feira, abril 01, 2008 9:08:00 da manhã  
Blogger f said...

No meio de muito dislumbrei tb a minha parte...
como não se agradeçe...agradeçendo!

A presença...o Arturibeiro!

... ... ...

terça-feira, abril 01, 2008 11:54:00 da manhã  
Blogger f said...

caro, adri o porf. está equivocado! é desse paradoxo q. se abre espaço para uma compreensão.

Tão tangencial quanto a superficie de lago que reflecte o sol e omite as profundezas.

Qualquer atitude ou pensamento que possa ter, devo reflectir que são nomes que dou a um único todo, premitindo-me viver uma experiência, mas eu não sou essa experiencia, estou a experiencia-la, como também não sou o pensamento que pensei. reflectindo, o que premanece...é o pensador sem pensamento e o experimentador sem experiencia, o observador sem o observado. Agora, penso ser essa a direcção!

.Uma Opinião.
Abraços

quarta-feira, abril 02, 2008 11:25:00 da manhã  
Blogger Ruben David Azevedo said...

Este texto de livro Siddartha é certeiro. Todos queremos descobrir-nos, encontrarmo-nos, conhecermo-nos. E queremos mais isso quando estamos em baixo, quando a vida não corresponde às espectativas que temos dela, quando somos agredidos por ela e sangramos. O sentido que todos procuramos mais não é do que a busca interminavel da nossa identidade. Porém essa busca pela identidade não pode significar uma fuga à própria vida, aos problemas que temos e nos vão surgindo. Descobrimos a nossa identidade no embate, no combate, e na reflexão sobre as nossas limitações. Temos de ter um pé na vida e outro fora dela. Um pé na batalha, e outro na colina onde melhor podemos ver a batalha que decorre no sopé. A busca que todos desejamos encetar é feita de asceticismo, mas ao mesmo tempo de mergulho corajoso e sangrento na própria vida.
Abraço Artur

quarta-feira, abril 02, 2008 12:23:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Largato,
Obrigado, pela reflexão conjunta e, pela forma e conteúdo com que abordou este novo paradígma.
O pensamento,ou a falha dele,é causa e efeito é cara e coroa,e, nesta dialética transforma-nos, revolvo-nos e tantas vezes, o equívoco dá lugar à afirmação,à palavra que se fez luz.
Bento de Jesus Caraça, homem das matemáticas,do humanismo e da cultura, dizia:"Senão receio o erro, é porque estou sempre pronto a corrigi-lo".Assim, quando o "professor" que somos nós se equivocar, saibamos seguir-lhe o exemplo.
Um abraço adri

quinta-feira, abril 03, 2008 5:40:00 da tarde  
Blogger tchi said...

Pois todos os instantes são momentos de aprender e descobrir a novidade sobre nós próprios. Somos ser mutantes.

Beijinho

segunda-feira, abril 14, 2008 1:27:00 da tarde  
Blogger pasta7 said...

estamos todos em sintonia!

terça-feira, abril 15, 2008 3:03:00 da manhã  

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