CLXVIII - Kali
Keshab Chandra Sen (1838-1884), o distinto líder do Brahmo Samaj, semi-hindu e semi-cristão, foi com alguns membros de seu séquito visitar Sri Ramakrishna em Dalkshineswar, um subúrbio da moderna cidade de Calcutá, onde o santo mestre oficiava como sacerdote no templo dedicado à Deusa Negra, Kali.
Keshab era um moderno e ocidentalizado cavalheiro hindu, de aparência cosmopolita, imbuído de uma filosofia religiosa progressiva, humanista e “sattvica” – em nada diferente daquela de seu contemporâneo da Nova Inglaterra, o transcendentalista (e estudioso da Bhagavadgita), Ralph Waldo Emerson.
Ramakrishna, por outro lado, era inteiramente hindu: ignorava, de propósito, o Inglês; nutria-se das tradições de sua terra natal; com longa prática nas técnicas da contemplação introvertida e pleno de experiências do divino.
O diálogo entre ambos os líderes religiosos foi o encontro da Índia moderna, temporal, e a Índia intemporal; entre a moderna consciência indiana e os símbolos divinos semi-esquecidos de seu próprio inconsciente.
Além disso, merece destaque o facto de que, nesta ocasião, o mestre não era o cavalheiro bem vestido e tradicionalmente educado no Ocidente – recebido em Londres pela própria rainha – mas sim o iogue em seus farrapos, falando dos deuses indianos com base em sua própria e directa experiência.
Keshab (sorrindo): “Descreva-nos, Senhor, de quantas maneiras Kali, a Mãe Divina, joga neste mundo”
Sri Ramakrishna (também sorrindo):
"Ó! Ela joga de maneiras diferentes. Unicamente Ela é conhecida por Maha-Kali (a Grande Negra), Nitya-Kali (a Sempre Negra), Smasana-Kali (Kali, a do crematório), Raksa Kali (Kali, a Duende) e Syama Kali (Kali, a Escura). Maha-Kali e Nitya-Kali são mencionadas na filosofia tântrica. Quando não existia criação, Sol, Lua, planetas ou Terra, e quando a escuridão estava envolvida pela escuridão, então a Mãe, a Sem-Forma, Maha-Kali, a Grande Potência, era una com Maha-Kala (esta é a forma masculina do mesmo nome), o Absoluto. Syama-Kali tem um aspecto um tanto mais suave e preside os cultos domésticos indianos. É a Dispensadora de benefícios e a Dispensadora do temor. As pessoas adoram Raksa-Kali, a Protectora, em tempos de epidemia, fome, terramoto, seca e enchentes. Smasana-Kali é a encarnação do poder da destruição. Reside no crematório cercada por cadáveres, chacais e terríveis espíritos femininos. De sua boca emana uma torrente de sangue, de seu pescoço pende uma grinalda de caveiras e, cingindo sua cintura, leva uma tira feita de mãos humanas. Após a destruição do Universo, ao fim do Grande Ciclo, a Mãe Divina armazena as Sementes para a próxima criação. Ela como a velha dona de casa que tem um baú onde guarda os mais diferentes artigos de uso doméstico. (Todos riem.) Ó, sim! As donas de casa têm lugares deste tipo onde guardam espuma de mar, pílulas azuis, pequenos feixes com sementes de pepino, abóbora e assim por diante. Elas utilizam tudo isso quando necessitam. Do mesmo modo, após a destruição do Universo, minha Mãe Divina, a encarnação do Brahman, recolhe todas as sementes para a próxima criação. Após a criação, o Poder Primordial reside no próprio Universo. Ela faz surgir este mundo fenoménico e nele penetra. Nos Veda, a criação é comparada à aranha e sua teia. A aranha tira a teia de si mesma. Deus é o continente do Universo e também seu conteúdo.
Sri Ramakrishna (também sorrindo):
"Ó! Ela joga de maneiras diferentes. Unicamente Ela é conhecida por Maha-Kali (a Grande Negra), Nitya-Kali (a Sempre Negra), Smasana-Kali (Kali, a do crematório), Raksa Kali (Kali, a Duende) e Syama Kali (Kali, a Escura). Maha-Kali e Nitya-Kali são mencionadas na filosofia tântrica. Quando não existia criação, Sol, Lua, planetas ou Terra, e quando a escuridão estava envolvida pela escuridão, então a Mãe, a Sem-Forma, Maha-Kali, a Grande Potência, era una com Maha-Kala (esta é a forma masculina do mesmo nome), o Absoluto. Syama-Kali tem um aspecto um tanto mais suave e preside os cultos domésticos indianos. É a Dispensadora de benefícios e a Dispensadora do temor. As pessoas adoram Raksa-Kali, a Protectora, em tempos de epidemia, fome, terramoto, seca e enchentes. Smasana-Kali é a encarnação do poder da destruição. Reside no crematório cercada por cadáveres, chacais e terríveis espíritos femininos. De sua boca emana uma torrente de sangue, de seu pescoço pende uma grinalda de caveiras e, cingindo sua cintura, leva uma tira feita de mãos humanas. Após a destruição do Universo, ao fim do Grande Ciclo, a Mãe Divina armazena as Sementes para a próxima criação. Ela como a velha dona de casa que tem um baú onde guarda os mais diferentes artigos de uso doméstico. (Todos riem.) Ó, sim! As donas de casa têm lugares deste tipo onde guardam espuma de mar, pílulas azuis, pequenos feixes com sementes de pepino, abóbora e assim por diante. Elas utilizam tudo isso quando necessitam. Do mesmo modo, após a destruição do Universo, minha Mãe Divina, a encarnação do Brahman, recolhe todas as sementes para a próxima criação. Após a criação, o Poder Primordial reside no próprio Universo. Ela faz surgir este mundo fenoménico e nele penetra. Nos Veda, a criação é comparada à aranha e sua teia. A aranha tira a teia de si mesma. Deus é o continente do Universo e também seu conteúdo.
Kali, minha Mãe Divina, tem pele escura? Ela parece ser negra porque é vista à distância; mas deixa de parecer assim quando a conhecemos em sua intimidade. O céu parece azul à distância mas, quando se observa o ar em volta, percebe-se que não tem cor. A água do oceano parece azul à distância mas, quando nos aproximamos e a colhemos em nossas mãos, vemos que ela é incolor.”
Sri Ramakrishna, arrebatado de amor pela deusa, cantou em seu louvor duas canções do devoto iogue bengali, Ramprasad, após o que continuou a conversa.
Sri Ramakrishna, arrebatado de amor pela deusa, cantou em seu louvor duas canções do devoto iogue bengali, Ramprasad, após o que continuou a conversa.
"A Mãe Divina é sempre alegre e jocosa. Este Universo é seu jogo. Ela é obstinada e faz sempre o que quer. Esta repleta de beatitude. Concede a liberdade a um entre cem mil."
Um devoto do Brahmo perguntou: "Mas, senhor, se Ela quiser, pode conceder a liberdade a todos. Por que, então, nos mantém acorrentados ao mundo?"
Sri Ramakrishna disse: "Esta é a sua vontade. Ela quer continuar jogando com seus seres criados. Num jogo de esconde-esconde a correria logo pára se, já no começo, todos acham a “vovó”. Se todos a encontram, como pode o jogo prosseguir? Isto a deixaria descontente. Sua satisfação está em continuar o jogo.
É como se a Mãe Divina dissesse à mente humana em segredo, com um sinal d'olhos: “Vá e goza o mundo!” Como podemos culpar a mente? A mente pode se livrar do mundano apenas se, por meio de Sua graça, Ela a direcciona para Si mesma".
Um devoto do Brahmo perguntou: "Mas, senhor, se Ela quiser, pode conceder a liberdade a todos. Por que, então, nos mantém acorrentados ao mundo?"
Sri Ramakrishna disse: "Esta é a sua vontade. Ela quer continuar jogando com seus seres criados. Num jogo de esconde-esconde a correria logo pára se, já no começo, todos acham a “vovó”. Se todos a encontram, como pode o jogo prosseguir? Isto a deixaria descontente. Sua satisfação está em continuar o jogo.
É como se a Mãe Divina dissesse à mente humana em segredo, com um sinal d'olhos: “Vá e goza o mundo!” Como podemos culpar a mente? A mente pode se livrar do mundano apenas se, por meio de Sua graça, Ela a direcciona para Si mesma".
Cantando uma vez mais as canções de Ramprasad, Sri Ramakrishna interrompeu seu discurso para continuar em seguida:
"A escravidão pertence à mente, assim como a liberdade. Um homem é livre se ele pensa constantemente: “Sou uma alma livre, como posso estar escravizado, quer viva no mundo quer na floresta? Sou um filho de Deus, o Rei dos reis. Quem pode agrilhoar-me? Quando picado por uma cobra, um homem pode livrar-se de seu veneno dizendo enfaticamente: “Em mim não há veneno”. Do mesmo modo, repetindo com firmeza e determinação: “não estou escravizado, sou livre”, ele realmente toma-se livre.
Certa vez alguém me deu um livro dos cristãos. Pedi-lhe que o lesse para mim. Não falava de outra coisa senão do pecado. E dirigindo-se a Keshab Chandra Sen, acrescentou: E também em teu Brahmo Samaj, o pecado é a única coisa de que se ouve falar. O infeliz que diz constantemente: “estou escravizado, estou escravizado”, só consegue estar escravizado. Aquele que repete noite e dia: “sou um pecador, sou um pecador” realmente torna-se um pecador.
Deveríamos ter uma fé tão fervorosa em Deus a ponto de poder dizer: “O quê? Como pode o pecado estar em mim se tenho repetido o nome de Deus? Como posso ainda ser pecador? Como posso ainda estar escravizado?”
Se um homem repete o nome de Deus, seu corpo, sua mente e tudo mais se purificam. Por que deveríamos falar sobre pecado, inferno e coisas tais? Digamos somente: “Ó Senhor, sem dúvida realizei más lições, porém não as repetirei”. E tenhamos fé em Seu nome."
"A escravidão pertence à mente, assim como a liberdade. Um homem é livre se ele pensa constantemente: “Sou uma alma livre, como posso estar escravizado, quer viva no mundo quer na floresta? Sou um filho de Deus, o Rei dos reis. Quem pode agrilhoar-me? Quando picado por uma cobra, um homem pode livrar-se de seu veneno dizendo enfaticamente: “Em mim não há veneno”. Do mesmo modo, repetindo com firmeza e determinação: “não estou escravizado, sou livre”, ele realmente toma-se livre.
Certa vez alguém me deu um livro dos cristãos. Pedi-lhe que o lesse para mim. Não falava de outra coisa senão do pecado. E dirigindo-se a Keshab Chandra Sen, acrescentou: E também em teu Brahmo Samaj, o pecado é a única coisa de que se ouve falar. O infeliz que diz constantemente: “estou escravizado, estou escravizado”, só consegue estar escravizado. Aquele que repete noite e dia: “sou um pecador, sou um pecador” realmente torna-se um pecador.
Deveríamos ter uma fé tão fervorosa em Deus a ponto de poder dizer: “O quê? Como pode o pecado estar em mim se tenho repetido o nome de Deus? Como posso ainda ser pecador? Como posso ainda estar escravizado?”
Se um homem repete o nome de Deus, seu corpo, sua mente e tudo mais se purificam. Por que deveríamos falar sobre pecado, inferno e coisas tais? Digamos somente: “Ó Senhor, sem dúvida realizei más lições, porém não as repetirei”. E tenhamos fé em Seu nome."
Sri Ramakrishna cantou:
"Se apenas pudesse eu falecer cantando o nome de Durga, Como poderias Tu, então, o Bem-aventurado, negar-me a liberação, por miserável que eu fosse?..."
"Se apenas pudesse eu falecer cantando o nome de Durga, Como poderias Tu, então, o Bem-aventurado, negar-me a liberação, por miserável que eu fosse?..."
Disse logo: “Orei à Minha Mãe Divina pedindo tão só amor puro, ofereci flores a Seus pés de lótus e roguei-Lhe: “Mãe, aqui está Tua virtude, aqui está Teu vício. Toma ambos e concede-me apenas amor puro por Ti. Aqui está Teu conhecimento, aqui está Tua ignorância. Toma ambos e concede-me apenas amor puro por Ti. Aqui está Tua pureza, aqui esta Tua impureza. Toma ambas e concede-me apenas amor puro por Ti. Aqui está teu dharma, aqui está Teu adharma. Toma ambos, Mãe, e concede-me apenas amor puro por Ti.””
Filosofias da Índia, Heinrich Zimmer
Filosofias da Índia, Heinrich Zimmer
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