9 de outubro de 2006

XL - Puro-Sangue

Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come ás vezes na minha mão. O seu focinho é húmido e fresco. Eu beijo-lhe o focinho! Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que ele é, ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta no nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: enganamo-nos e pensamos que somos nós que relinchamos de prazer ou de cólera, assustamo-nos com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.


Clarice Lispector