24 de outubro de 2006

LXXXI - O quão diferente é “VER” de “OLHAR”

As coisas não são apenas coisas

O Grão Kan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. O fim de todas as partidas é o ganhar ou perder: mas o quê? Qual era a verdadeira aposta? Ao xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pelas mãos do vencedor, resta o nada: um quadrado preto ou branco. À força de desmaterializar as suas conquistas para as reduzir à essência, Grão Kan Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os tesouros multiformes do império não passam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada.

Então Marco Polo disse:
- O teu tabuleiro, Senhor, é um conjunto de duas madeiras incrustadas: ébano e roble. A casa em que se fixa o teu olhar iluminado foi cortada de uma camada de tronco que cresceu num ano de seca: vês como estão dispostos os veios? Nota-se aqui um nódulo apenas esboçado: um rebento que tentou brotar num dia de Primavera precoce, mas a geada nocturna obrigou-o a desistir. Eis aqui um poro mais grosso: talvez tenha sido o ninho de uma larva; não de caruncho, porque assim que nascesse teria continuado a escavar, mas sim de uma lagarta que roeu as folhas, e foi por isso que escolheram esta árvore para ser abatida... Esta borda foi talhada pelo marceneiro com a goiva para aderir ao quadrado contíguo, mais saliente...

A quantidade de coisas que se podiam ler num bocadinho de madeira liso e vazio abismava Kublai; e Marco Polo já estava a falar dos bosques de ébanos, das jangadas de troncos que desciam os rios, dos cais, das mulheres às janelas...
Italo Calvino