24 de outubro de 2006

LXXIX - Que nenhum de nós seja ”LEÓNIA”



Eu falo, falo, mas quem me ouve só fixa o que deseja.

Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.


A cidade de Leónia refaz-se a si própria cada dia que passa: todas as manhãs a população acorda no meio de lençóis frescos, lava-se com sabonetes acabados de tirar da embalagem, veste roupas novinhas em folha, extrai do mais aperfeiçoado frigorífico frascos e latas ainda intactos, ouvindo as últimas canções no último modelo de aparelho de rádio.

Nos passeios, embrulhados em rígidos sacos de plástico, os restos da Leónia de ontem esperam o carro do lixo. Não só tubos de pasta dentífrica bem apertados, lâmpadas fundidas, jornais, contentores, restos de embalagens, mas também esquentadores, enciclopédias, pianos, serviços de porcelana: mais do que pelas coisas que dia a dia são fabricadas vendidas e compradas, a opulência de Leónia mede-se pelas coisas que dia a dia se deitam fora para dar lugar às novas. De tal modo que há quem se interrogue se a verdadeira paixão de Leónia é realmente como dizem o gozar as coisas novas e diferentes, ou antes o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de uma constante impureza.

Acrescente-se que quanto mais se aperfeiçoa a arte de Leónia no fabricar novos materiais, mais o lixo melhora a sua substância, resiste ao tempo, às intempéries, a fermentações e combustões. É uma fortaleza de resíduos indestrutíveis que rodeia Leónia, que a domina de todos os lados como um maciço de montanhas.

O resultado é este: que quanto mais Leónia deita fora, mais coisas acumula; as escamas do seu passado fundem-se numa couraça que não se pode tirar; renovando-se dia a dia a cidade conserva-se toda na única forma definitiva: a dos lixos de ontem que se amontoam nas lixeiras de anteontem e de todos os seus dias e anos e lustros.

Quanto mais os lixos crescem em altura, mais paira o perigo das derrocadas: basta que uma lata, um velho pneu ou um garrafão rebole para que a avalancha aconteça.
Italo Calvino

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

fabuloso
fabulosa adorei esta essência!

adoro-te
Beijo grande.

quinta-feira, maio 24, 2007 7:08:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

PARABENS Artur...
Os teus mail's são fantásticos!!
Bjnho grd.

quinta-feira, maio 24, 2007 7:08:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

"As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino. Um dos livros da minha vida. Quão bom é, mesmo estando tão longe, ter recebido algumas linhas dele pela mão dum amigo.

Um grande abraço!

quinta-feira, maio 24, 2007 7:09:00 da tarde  
Blogger Laércio Miranda said...

Vou usar o texto na versão portugues do Brasil para os meus alunos daqui.
Abraços!!!
http://www.mundoprosa.blogspot.com/

quarta-feira, abril 14, 2010 11:31:00 da tarde  
Blogger pasta7 said...

Laércio Miranda, bom trabalho! Abraço.

quinta-feira, abril 15, 2010 12:07:00 da tarde  

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