17 de dezembro de 2009

CLXXII - A Batalha do Natal

— Só mais seis dias — disse Neli.
Enquanto a filha tentava assobiar Noite Feliz, a mãe repetiu, pensativa, numa voz que não soava alegre:
— Ainda seis dias.
Após uma curta pausa, prosseguiu, suspirando:
— Se tudo já tivesse passado!
Com o assobio suspenso no ar, Neli olhou para a mãe com ar estupefacto:
— Não estás contente?
— Claro que sim, mas já estou pelos cabelos com esta agitação toda!
Como Neli não tinha aulas à tarde, foi patinar com uma amiga. Ao cair da noite, dirigiu-se ao supermercado onde a mãe trabalhava. Havia tanto movimento que o lugar mais parecia uma colmeia. A mãe estava sentada numa cadeira giratória, diante de uma das seis caixas registadoras. Os produtos chegavam-lhe num tapete rolante. Enquanto a mão direita marcava os números no teclado, a mão esquerda rodava as embalagens para que a máquina pudesse ler os códigos. Finda a operação, os produtos eram colocados, um a um, no carrinho de compras. Quando acabava de marcar tudo, a mão direita carregava na tecla do total e rasgava o talão, enquanto a esquerda afastava o carro cheio e puxava o próximo, vazio, para junto dela.
— Que bem fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu faria tudo devagar e, ainda por cima, metade saía mal.
— Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino. Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não encontrava a etiqueta com o preço e, muitas vezes, carregava nas teclas erradas. Como tinham de esperar, as pessoas resmungavam. Agora já quase consigo fazer isto automaticamente.
— Como um robô! — Neli riu-se.
E se tivesse um robô como mãe? Nunca teria dores de cabeça, nem à noite estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração e, por isso, Neli preferia a mãe tal como era, mesmo quando, em certas noites, quase nem conseguia falar de tão cansada!
Só mais quatro dias.
Só mais três.
As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um ruído sibilante, as portas automáticas abriam e fechavam, abriam e fechavam. A mãe sentia nas costas a corrente de ar e os cartões pendurados no tecto balançavam de um lado para o outro.
Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe, tinha escrito a vermelho: PROMOÇÃO: Bombons, 250 gr, a preço especial.
Perto dele balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos, como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80€/kg.
Os altifalantes debitavam música de Natal:
Noite feliz…
Cabeça de anho
Noite feliz…
Descafeinado
Papel higiénico de três folhas
O Senhor…
Lenços com monograma
Mostarda
Nasceu em Belém…
A mãe suspirava e, com um movimento rápido, limpava o suor do lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam, apoiando-se ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem olhavam para a senhora da caixa, pensando apenas no regresso a casa com os sacos pesados e o eléctrico cheio.
Ufa!
Só mais três dias, e acabaria tudo.
— Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse a mãe, à noite, virando-se para Neli. — Patê em folhas de alface, porco assado, batatas fritas, feijão e, para sobremesa, creme de chocolate de lata com peras.
No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um desconto de 15%, os produtos que tinham sobrado. A mãe de Neli achava que valia a pena e, por isso, tinha guardado as compras maiores para essa altura: uma pasta escolar para Neli, uma boneca, lápis de cor, um anoraque para o pai, e a comida para a ceia de Natal.
Na sala do pessoal, houve um lanche para todos os empregados.
— A batalha do Natal foi mais uma vez vencida — alegrou-se o chefe do pessoal, que proferiu mais umas palavras elogiosas.
Depois foram servidos pãezinhos com fiambre e um copo de vinho a cada um.
Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava na paragem do autocarro. “As minhas prendas! Todas aquelas coisas boas para a ceia!”, pensou assustada.
Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não voltava a abrir. Chegou a casa de mãos vazias.
Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai acendeu as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou das duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o muito bonito e o pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi mais curto do que o planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o assado e havia batatas em casa, mas não houve entrada nem sobremesa. Trincaram nozes e comeram maçãs.
— Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me caem bem.
Também não havia muito que desembrulhar.
Por isso, sobrou tempo. Muito tempo.
Neli foi buscar o jogo “Memory” que recebera no Natal anterior. Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que alguém tivesse tempo para jogar com ela.
Agora, os pais tinham tempo.
O pai nunca tinha jogado “Memory”. Ao fim de algum tempo, Neli já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que geralmente queria ganhar sempre, procurava constantemente no sítio errado.
Tentava alguns truques, pondo, sem ninguém dar conta, migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou pousava as mãos na mesa, de forma a que o polegar indicasse a direcção em que estava uma determinada carta. Mas Neli descobriu-lhe a jogada. Jogaram mais duas ou três vezes e o pai não se zangou por perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do assalto.
À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela janela. A neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar.
— A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse a mãe, e Neli reparou que, afinal, a mãe estava contente por ser Natal.
Ao ir para a cama, Neli disse:
— Este foi um Natal muito bonito.
— A sério? — perguntou a mãe, admirada. — Mas não houve ceia nem prendas quase nenhumas.
Mas houve muito tempo — respondeu Neli.

Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
(Tradução e adaptação)