XVI - Qualidade de Vida
Apostar literalmente no provir é um belo jogo, mas é um jogo de quem já se resignou a perder o presente.
Os enganos do mundo!
Os enganos do mundo!
Miguel Torga
O que é a qualidade de vida?
O que queremos e o que buscamos?
Porque razão a luta pela sobrevivência mata no Homem a condição de pessoa?
E porque razão também, ultrapassada a meta da sobrevivência, caímos na angústia da avidez?
O Homem sofre pelos “seus ideais” e vive constantemente a situação de conflito entre o que é e o que julga que deveria ser. O descontentamento do actual cria a alternativa do futuro para onde transferimos todos os desejos de uma realização indefinida, inevitavelmente suposta melhor.
Acontece assim provavelmente à maioria de nós. Poucos porem, se apercebem disso porque, ou se agarram com uma falsa alegria aos meios de diversão e atordoamento, ou se absorvem em responsabilidades tidas por importantes, ou transferem, para o destino, a sociedade, o emprego, a família, os governos, a origem da mediocridade das suas vidas e a amargura, aí bem conscientes, de uma existência sempre adiada.
Esta é a origem do conflito em cada Homem: não gostar da forma como está na vida, e desistir todos os dias da sua forma de ser. Está, mas não é. E como subterfúgio ele dirá sempre que ainda um dia...
Um dia que nunca chega, porque, entretanto, ele será encarado a cada passo pelas preocupações da sobrevivência e, logo em seguida, ainda sem poder respirar, por toda uma sociedade formada por homens sôfregos -também angustiados- que inventam necessidades, prometem sucesso, acenam com esperança e vendem desesperadamente tudo, a troco de dinheiro que irá servir para inventar novas necessidades e novas esperanças.
Assim o Homem é esvaziado no seu todo. Tem de lutar para sobreviver, sem espaço para ser.
Dá-se a inversão dos valores: O que é bom é o que faz esquecer; o que é mau é o que lhe lembra a condição em que vive.
Qual é então a qualidade de vida?
É esta amargura constante em que procuramos sobreviver?
É o riso forçado e provocado pela excitação dos vários tipos de drogas - festas, carros, férias de cansaço, competições?
É ter um “bom emprego”, ou bens ou negócios, que desenvolvam, quase sempre, não as potencialidades criadoras, mas a avidez, a ambição e a inveja?
É ter desistido da vida pessoal, em favor do futuro?
Se a vida é um acontecimento que magoa, empobrece e amedronta, então algo deve ser revisto urgentemente, porque falhamos ao cria-la. E o que deve ser revisto é a qualidade da existência e o seu verdadeiro significado.
E porque a qualidade da vida as liga ao seu significado, é necessária uma disponibilidade interior, como quem pára um pouco, para a descobrir.
Sentir a vida não é alienar-se dela. É tomá-la no seu todo, é estar desperto para nós e para os outros, para os movimentos que se processam dentro e fora da nossa interioridade.
Mas para que isto seja possível, para que a qualidade de vida seja resposta à própria vida, é imprescindível que o Homem tome consciência da sua condição, repudiando ilusões e criando realidades.
E se a luta pela sobrevivência é, em princípio, a mais tremenda das formas de alienação, porque obceca, fere, e transporta a nossa mente para a incerteza do amanhã, não deixando nem espaço, nem tempo para sermos, as lutas por outras sobrevivências em outros graus –sucesso, poder, importância - não são menos alienantes, porque também elas, metas falsas sem significado, nos absorvem e distraem da profunda comunicação com a existência.
Não tem lugar o Amor, portanto não tem lugar a Vida.
Agem assim contra o Homem, várias forças que o agrilhoam e o desgastam. Deformam-lhe a mente e os valores, a tal ponto, que o próprio desejo duma qualidade de vida melhor, acaba por ser povoado pela ambição daquilo que mata nele a alegria que tanto procura.
Mas o conflito interior de cada Homem - este estar tragicamente agarrado à esperança do futuro, porque se não acredita no presente - não é apenas o resultado das contradições do viver de cada dia. Ele tem uma origem profunda e longínqua nesse sentimento a que chamamos medo.
A sociedade oprime-nos primeiro e oferece-nos as alternativas depois. Se queremos ter sucesso, se queremos ter uma vida em segurança para nós e para os nossos, se queremos ser homens brilhantes, importantes, subir na vida, temos, em troca, de comprar, aderir, acompanhar.
E o medo de ficar para trás, o medo de não ter, o medo do futuro, geram em nós um constante desespero, transformando numa luta - a luta pela vida – que, ao ocupar totalmente a nossa mente, como uma obsessão, não permite nem tempo, nem, espaço, nem disponibilidade, nem alma para sermos o que realmente somos.
A prioridade que damos à fuga ao medo esgota a capacidade que temos de viver. Sobrevivemos, mas não existimos: o presente deixa de existir porque o presente é ocupado no medo e na salvaguarda do futuro.
A partir daqui o Homem cria valores que justificam a sua conduta. E assim vemos eleger o sucesso, a riqueza, a importância, como fontes de poder, estimuladas e alertadas, no pobre Homem que, entre confuso e medroso, pactua com os novos “deuses”.
Mas os desejos de sucesso, de riqueza e de importância, são eles próprios geradores do medo, do medo de os não ter. Nasce aí a competição, a inveja, a ambição, o atropelo de tudo e de todos, na corrida desesperada para a conquista dos bens que nunca mais nos darão a paz interior.
Grotescamente, as mais importantes manifestações da condição humana – o Amor, a Beleza, a Amizade, a Ternura – são evocadas nas novas técnicas de “marketing”, como metas que se atingem pela aquisição de objectos e quinquilharias que empobrecem o Homem, não apenas porque os compra, mas porque para eles transfere a emotividade da sua vida. O carro é índice de sucesso e caminho para o amor. A exploração desenfreada da afectividade humana promove as falsas esperanças, e produz, ela mesma, novas angústias para as quais virão outras soluções “marketingianas”.
Produzir o medo e explorá-lo, eis a grande descoberta duma sociedade que evoca, para isso, a protecção do Homem.
Tem o medo algo a ver com a qualidade de vida?
Suponhamos um Homem que julga amar muito os seus filhos. No seu conceito de amor, o melhor que poderá dar-lhes é assegurar-lhes o futuro. Mas o que é o futuro? Uma situação que o proteja das contingências da fome, da miséria, ou da meia-tigela. O medo age aqui determinado no pai, que se julga amoroso para com os seus filhos, uma preocupação de salvaguarda do futuro. Então ele determinará que o seu filho tenha um diploma, uma herança se possível, um meio de vida, que ele pai, acha que é o melhor. A sua experiência diz-lhe que assim deve ser e diz-lhe também que agora o futuro está, por exemplo, na engenharia. O seu filho é preparado para isso quase desde que nasce. Estuda, procura convencer-se que assim será e, entre uma ou outra rebelião, vai prosseguindo.
Mas, no entanto, algumas vezes, sente o entusiasmo pela vida, talvez pela música, talvez pela poesia ou até pelo ensino. Mas o pai, atento, ampara-o e proteje-o. Dá-lhe conselhos, tem outra experiência, sabe o que é a vida. Por fim aparecerá o jovem engenheiro. Como classe de certa importância, o casamento tem de ser de igual dignidade!
Mas admitamos que a actividade do jovem engenheiro, não dá resposta à sua vida; que o casamento não é o que esperava. Entretanto, como “hobby” dedica-se à música ou à poesia.
A vida, no dia-a-dia, é uma frustração e um constante desgaste de alegria e amor. O “hobby” uma espécie de retorno à sua dimensão e aos seus anseios. Mas é preciso que fazer sobreviver a condição, Aí, a luta é feroz, para manter uma situação para a qual não se tem alma, e por não ter a vida que estava na sua interioridade. Fica cansado de não ser ele. E o desespero, meio inconsciente, torna-o ávido e ambicioso, na procura de uma meta que dê resposta à sua vida. Meio feliz e meio infeliz, não chega a encontrar um significado para a existência.
De facto, talvez se fosse professor ou músico, ou qualquer outra coisa inerente à sua natureza, ele mantivesse intactas e até enriquecesse as potencialidades criadoras da sua alma. Mas o medo do seu pai e o medo que lhe foi contagiado, mataram nele a vida, o amor e a alegria. Mais valeria ser um varredor que assobiasse estivesse desperto para a vida, do que um engenheiro frustrado, envolvido no desespero.
Só pode falar das coisas quem as experimenta, amando-as e sofrendo-as. O resto são meras imagens que a memória e a educação no deram.
A insatisfação das necessidades vitais é a maior afronta à condição humana e a denuncia da falência do progresso.
Pergunta-se, então, o que é que o progresso adianta para a qualidade de vida?
Provavelmente nada, necessariamente tudo: o progresso é a educação que torna a mente livre para perceber a diferença entre existir e sobreviver; o progresso é a criação ou renovação de valores que desmistifiquem as falsas necessidades; o progresso é a descoberta e construção de sistemas que libertem o Homem da angústia do amanha e lhe dêem espaço e tempo livre, para ser pessoa; o progresso é a criação de condições interiores que permitam a percepção do significado da vida e tornem o coração do Homem a morada do Amor, da Beleza, e da Alegria.
O que queremos e o que buscamos?
Porque razão a luta pela sobrevivência mata no Homem a condição de pessoa?
E porque razão também, ultrapassada a meta da sobrevivência, caímos na angústia da avidez?
O Homem sofre pelos “seus ideais” e vive constantemente a situação de conflito entre o que é e o que julga que deveria ser. O descontentamento do actual cria a alternativa do futuro para onde transferimos todos os desejos de uma realização indefinida, inevitavelmente suposta melhor.
Acontece assim provavelmente à maioria de nós. Poucos porem, se apercebem disso porque, ou se agarram com uma falsa alegria aos meios de diversão e atordoamento, ou se absorvem em responsabilidades tidas por importantes, ou transferem, para o destino, a sociedade, o emprego, a família, os governos, a origem da mediocridade das suas vidas e a amargura, aí bem conscientes, de uma existência sempre adiada.
Esta é a origem do conflito em cada Homem: não gostar da forma como está na vida, e desistir todos os dias da sua forma de ser. Está, mas não é. E como subterfúgio ele dirá sempre que ainda um dia...
Um dia que nunca chega, porque, entretanto, ele será encarado a cada passo pelas preocupações da sobrevivência e, logo em seguida, ainda sem poder respirar, por toda uma sociedade formada por homens sôfregos -também angustiados- que inventam necessidades, prometem sucesso, acenam com esperança e vendem desesperadamente tudo, a troco de dinheiro que irá servir para inventar novas necessidades e novas esperanças.
Assim o Homem é esvaziado no seu todo. Tem de lutar para sobreviver, sem espaço para ser.
Dá-se a inversão dos valores: O que é bom é o que faz esquecer; o que é mau é o que lhe lembra a condição em que vive.
Qual é então a qualidade de vida?
É esta amargura constante em que procuramos sobreviver?
É o riso forçado e provocado pela excitação dos vários tipos de drogas - festas, carros, férias de cansaço, competições?
É ter um “bom emprego”, ou bens ou negócios, que desenvolvam, quase sempre, não as potencialidades criadoras, mas a avidez, a ambição e a inveja?
É ter desistido da vida pessoal, em favor do futuro?
Se a vida é um acontecimento que magoa, empobrece e amedronta, então algo deve ser revisto urgentemente, porque falhamos ao cria-la. E o que deve ser revisto é a qualidade da existência e o seu verdadeiro significado.
E porque a qualidade da vida as liga ao seu significado, é necessária uma disponibilidade interior, como quem pára um pouco, para a descobrir.
Sentir a vida não é alienar-se dela. É tomá-la no seu todo, é estar desperto para nós e para os outros, para os movimentos que se processam dentro e fora da nossa interioridade.
Mas para que isto seja possível, para que a qualidade de vida seja resposta à própria vida, é imprescindível que o Homem tome consciência da sua condição, repudiando ilusões e criando realidades.
E se a luta pela sobrevivência é, em princípio, a mais tremenda das formas de alienação, porque obceca, fere, e transporta a nossa mente para a incerteza do amanhã, não deixando nem espaço, nem tempo para sermos, as lutas por outras sobrevivências em outros graus –sucesso, poder, importância - não são menos alienantes, porque também elas, metas falsas sem significado, nos absorvem e distraem da profunda comunicação com a existência.
Não tem lugar o Amor, portanto não tem lugar a Vida.
Agem assim contra o Homem, várias forças que o agrilhoam e o desgastam. Deformam-lhe a mente e os valores, a tal ponto, que o próprio desejo duma qualidade de vida melhor, acaba por ser povoado pela ambição daquilo que mata nele a alegria que tanto procura.
Mas o conflito interior de cada Homem - este estar tragicamente agarrado à esperança do futuro, porque se não acredita no presente - não é apenas o resultado das contradições do viver de cada dia. Ele tem uma origem profunda e longínqua nesse sentimento a que chamamos medo.
A sociedade oprime-nos primeiro e oferece-nos as alternativas depois. Se queremos ter sucesso, se queremos ter uma vida em segurança para nós e para os nossos, se queremos ser homens brilhantes, importantes, subir na vida, temos, em troca, de comprar, aderir, acompanhar.
E o medo de ficar para trás, o medo de não ter, o medo do futuro, geram em nós um constante desespero, transformando numa luta - a luta pela vida – que, ao ocupar totalmente a nossa mente, como uma obsessão, não permite nem tempo, nem, espaço, nem disponibilidade, nem alma para sermos o que realmente somos.
A prioridade que damos à fuga ao medo esgota a capacidade que temos de viver. Sobrevivemos, mas não existimos: o presente deixa de existir porque o presente é ocupado no medo e na salvaguarda do futuro.
A partir daqui o Homem cria valores que justificam a sua conduta. E assim vemos eleger o sucesso, a riqueza, a importância, como fontes de poder, estimuladas e alertadas, no pobre Homem que, entre confuso e medroso, pactua com os novos “deuses”.
Mas os desejos de sucesso, de riqueza e de importância, são eles próprios geradores do medo, do medo de os não ter. Nasce aí a competição, a inveja, a ambição, o atropelo de tudo e de todos, na corrida desesperada para a conquista dos bens que nunca mais nos darão a paz interior.
Grotescamente, as mais importantes manifestações da condição humana – o Amor, a Beleza, a Amizade, a Ternura – são evocadas nas novas técnicas de “marketing”, como metas que se atingem pela aquisição de objectos e quinquilharias que empobrecem o Homem, não apenas porque os compra, mas porque para eles transfere a emotividade da sua vida. O carro é índice de sucesso e caminho para o amor. A exploração desenfreada da afectividade humana promove as falsas esperanças, e produz, ela mesma, novas angústias para as quais virão outras soluções “marketingianas”.
Produzir o medo e explorá-lo, eis a grande descoberta duma sociedade que evoca, para isso, a protecção do Homem.
Tem o medo algo a ver com a qualidade de vida?
Suponhamos um Homem que julga amar muito os seus filhos. No seu conceito de amor, o melhor que poderá dar-lhes é assegurar-lhes o futuro. Mas o que é o futuro? Uma situação que o proteja das contingências da fome, da miséria, ou da meia-tigela. O medo age aqui determinado no pai, que se julga amoroso para com os seus filhos, uma preocupação de salvaguarda do futuro. Então ele determinará que o seu filho tenha um diploma, uma herança se possível, um meio de vida, que ele pai, acha que é o melhor. A sua experiência diz-lhe que assim deve ser e diz-lhe também que agora o futuro está, por exemplo, na engenharia. O seu filho é preparado para isso quase desde que nasce. Estuda, procura convencer-se que assim será e, entre uma ou outra rebelião, vai prosseguindo.
Mas, no entanto, algumas vezes, sente o entusiasmo pela vida, talvez pela música, talvez pela poesia ou até pelo ensino. Mas o pai, atento, ampara-o e proteje-o. Dá-lhe conselhos, tem outra experiência, sabe o que é a vida. Por fim aparecerá o jovem engenheiro. Como classe de certa importância, o casamento tem de ser de igual dignidade!
Mas admitamos que a actividade do jovem engenheiro, não dá resposta à sua vida; que o casamento não é o que esperava. Entretanto, como “hobby” dedica-se à música ou à poesia.
A vida, no dia-a-dia, é uma frustração e um constante desgaste de alegria e amor. O “hobby” uma espécie de retorno à sua dimensão e aos seus anseios. Mas é preciso que fazer sobreviver a condição, Aí, a luta é feroz, para manter uma situação para a qual não se tem alma, e por não ter a vida que estava na sua interioridade. Fica cansado de não ser ele. E o desespero, meio inconsciente, torna-o ávido e ambicioso, na procura de uma meta que dê resposta à sua vida. Meio feliz e meio infeliz, não chega a encontrar um significado para a existência.
De facto, talvez se fosse professor ou músico, ou qualquer outra coisa inerente à sua natureza, ele mantivesse intactas e até enriquecesse as potencialidades criadoras da sua alma. Mas o medo do seu pai e o medo que lhe foi contagiado, mataram nele a vida, o amor e a alegria. Mais valeria ser um varredor que assobiasse estivesse desperto para a vida, do que um engenheiro frustrado, envolvido no desespero.
Só pode falar das coisas quem as experimenta, amando-as e sofrendo-as. O resto são meras imagens que a memória e a educação no deram.
A insatisfação das necessidades vitais é a maior afronta à condição humana e a denuncia da falência do progresso.
Pergunta-se, então, o que é que o progresso adianta para a qualidade de vida?
Provavelmente nada, necessariamente tudo: o progresso é a educação que torna a mente livre para perceber a diferença entre existir e sobreviver; o progresso é a criação ou renovação de valores que desmistifiquem as falsas necessidades; o progresso é a descoberta e construção de sistemas que libertem o Homem da angústia do amanha e lhe dêem espaço e tempo livre, para ser pessoa; o progresso é a criação de condições interiores que permitam a percepção do significado da vida e tornem o coração do Homem a morada do Amor, da Beleza, e da Alegria.
Júlio Roberto
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